O Risco Invisível de Espiritualizar a Psicose

O Risco Invisível de Espiritualizar a Psicose: Entre o Sagrado e o Sofrimento Psíquico
Em uma sociedade cada vez mais aberta à espiritualidade e às experiências transcendentes, cresce também um risco silencioso: confundir sintomas de psicose com vivências espirituais. Essa confusão, embora bem-intencionada, pode ter consequências graves para quem está em sofrimento mental.

A Linha Tênue Entre o Místico e o Patológico
Nem toda experiência extraordinária é patológica, mas nem toda vivência espiritual é sinal de iluminação. A psicose, do ponto de vista clínico, é caracterizada pela perda de contato com a realidade, podendo envolver alucinações, delírios, desorganização do pensamento e isolamento social. Já a experiência mística genuína pode envolver estados de êxtase e transcendência, mas sem comprometer a estrutura psíquica da pessoa.
Segundo o material produzido pela Associação Médico-Espírita do Rio Grande do Sul (AMERGS), distinguir esses dois fenômenos é um imperativo ético tanto para profissionais da saúde quanto para líderes espirituais. O diagnóstico errado pode levar ao adiamento do tratamento e a danos neurológicos irreversíveis.

Quando a Espiritualidade Vira Escudo
O fenômeno chamado espiritualização da psicose ocorre quando sintomas de um transtorno mental são interpretados como mediunidade, despertar da consciência ou missão divina. Essa leitura pode retardar o início de cuidados médicos e causar sofrimento profundo e desamparo.
Casos como o de João, um jovem que confundiu um surto psicótico com despertar espiritual, ilustram os riscos de buscar apenas respostas religiosas ou místicas sem suporte clínico. Após meses de negação e práticas espirituais intensas, João acabou hospitalizado em estado grave.
“O verdadeiro cuidado espiritual não exclui o cuidado psíquico — assim como o autêntico cuidado psíquico não deve ignorar a dimensão espiritual.” — AMERGS

O Papel da Cultura e da Religião
Diversas tradições, como o espiritismo, o xamanismo e religiões afro-brasileiras, interpretam experiências de transe e incorporação como normais dentro de seu contexto ritual. No entanto, sem critérios clínicos adequados, pode-se romantizar o sofrimento psíquico ou patologizar a fé.
A chave está em uma sensibilidade cultural crítica: compreender o contexto religioso sem abrir mão do compromisso com o bem-estar da pessoa.

Critérios Diferenciais: Misticismo ou Psicose?
Alguns sinais ajudam a diferenciar uma experiência espiritual autêntica de um episódio psicótico.
Na experiência espiritual, a pessoa mantém algum grau de insight e consciência de que vive algo incomum. O pensamento é coerente, o afeto é equilibrado e a funcionalidade permanece preservada. Já na psicose, há perda do senso crítico, discurso desorganizado, emoções inadequadas e isolamento social.
Esses critérios não substituem avaliação médica, mas ajudam a identificar sinais de alerta e a orientar uma busca mais adequada por tratamento.

Ciência e Espiritualidade: Um Diálogo Necessário
Autores como Viktor Frankl e Carl Jung mostraram que espiritualidade e psicologia não precisam ser inimigas. A integração entre ambas permite reconhecer o sentido existencial do sofrimento sem negligenciar a biologia e a mente.
A abordagem integrativa propõe equipes multidisciplinares, formação cultural ampliada e diálogo entre profissionais de saúde mental e líderes espirituais, sempre com foco na segurança e na dignidade da pessoa.

Um Chamado à Consciência Ética
O e-book da AMERGS alerta que 68% das pessoas em primeiro episódio psicótico no Brasil buscam primeiro ajuda espiritual antes de procurar atendimento médico. Isso mostra a importância de preparar líderes religiosos e terapeutas para reconhecer sinais de risco e encaminhar adequadamente.
“O risco invisível de espiritualizar a psicose só se torna visível quando iluminado simultaneamente pela luz da ciência e pelo calor da espiritualidade autêntica.” — AMERGS

Referência:
Associação Médico-Espírita do Rio Grande do Sul (AMERGS). O Risco Invisível de Espiritualizar a Psicose: Uma Análise Crítica e Integrativa. Porto Alegre, 2024. Disponível em: www.amergs.org.br

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