Sheila Teresa Carmona Simões[1]
Esta breve reflexão pretende elucidar o estágio de motivação em que se encontram as pessoas que procuram orientação na Casa Espírita para o problema da dependência química, associando seus pressupostos ao conceito da Parábola do Semeador.
Cada pessoa tem seu jeito de começar a usar e continuar usando Substâncias Psicoativas (SPA) ou drogas, como são conhecidas. Os fatores envolvidos na experimentação, uso, abuso e dependência química têm origem complexa, que se pode entender como espírito-biopsicossocial. Para desmembrar esta complexidade entendemos que somos um espírito, que moldou a reencarnação do corpo biológico através do Modelo Organizador Biológico – MOB 1, com uma estrutura psíquica e padrões psicológicos desenvolvidos no decorrer da vida e, ainda mais, influenciada pelo ambiente social, constituído pela família e sociedade 2 .
Além disso, cada pessoa tem seu jeito de procurar um tratamento quando alguém diz que ela está com problemas com o álcool e outras drogas ou ela própria se dá conta que precisa de ajuda. Isso quer dizer que nem sempre receberemos uma pessoa que estará convencida da sua necessidade de mudança do comportamento 3. Pode acontecer que ela tenha se assustado com os sintomas da abstinência ou percebeu que está correndo o risco de perder o emprego ou o ano escolar, ou ainda, um familiar a tenha trazido num momento de vulnerabilidade.
Seja qual for a razão pela procura de ajuda, a pessoa espera uma escuta atenta de suas dúvidas e emoções, quase sempre conturbadas pelas drogas. Provavelmente, ela não saberá definir seus objetivos, nem fazer escolhas claras de suas necessidades. Talvez ela não saiba que é possível sair desse turbilhão de sensações e efeitos fisiológicos causados pela droga, se ela aprender a identificar seus sentimentos e pensamentos que são disparadores da necessidade de usar e abusar das substâncias.
Joanna de Ângelis4 lembra que quando o ser deixa-se conduzir pelas manifestações primitivas de vivências anteriores malbaratadas, os pensamentos de dor, de angústia e pessimismo predominam no psiquismo, em razão de sua força desequilibradora.
Neste contexto, devemos considerar a pessoa que procura ajuda de “pessoa que sofre”, não de drogada ou viciada, e a SPA que ela elegeu para mostrar seu sofrimento de “voz da sua dor”. Aos poucos a sua própria voz vai falar do seu sofrimento e a droga vai deixar de ser o canal da sua dor. E assim, “o novo hábito se irá implantando lentamente na consciência até tornar-se parte integrante do comportamento” 4 .
Nas questões da dependência química ninguém vai convencer o outro a se tratar, por melhores argumentos que tenha. Aliás, nenhum argumento importa se não os que a própria pessoa encontrar para si mesma. Quando alguém se dispõe a escutar uma pessoa que sofre, deverá silenciar sua experiência pessoal, e sua opinião não deve ser imposta para não comprometer o canal de comunicação que se inaugura naquele momento.
Sobretudo, o motivo que faz alguém se tratar tem que emergir da própria pessoa, a fim de evitar respostas defensivas, elevando a negação do problema e o comportamento de resistência.
A partir deste entendimento foi desenvolvida a Entrevista Motivacional Breve3, uma abordagem psicoterapêutica utilizada por técnicos, que descreve uma série de estágios pelos quais as pessoas passam no curso da modificação de um problema. Por ser um instrumento desenvolvido a partir de centenas de pesquisas científicas tem sua eficácia comprovada, e seus conceitos valiosos serão adaptados neste texto para a utilização nas Casas Espíritas.
Ao receber a pessoa que sofre, o voluntário poderá perceber que a forma de falar com um não surte o mesmo efeito quando fala com outro. Principalmente, na participação de grupos de apoio, onde cada um vai entender o que é dito conforme suas condições pessoais e nem sempre há concordância entre as pessoas em relação ao o que é o problema, podendo haver entendimento diferente da situação para um e o outro não percebê-la como problemática.
Portanto, o que motiva as pessoas à mudança?
A motivação não deve ser pensada como um problema de personalidade, nem como um traço que a pessoa carrega consigo, pelo contrário, a motivação é um estado de prontidão ou de avidez para mudança, que pode oscilar de tempos em tempos ou de uma situação para outra. É um estado interno influenciado por fatores externos 3.
Na mudança de comportamento, em qualquer que seja o problema – drogas, comida, relacionamento – a estrutura da mudança parece ser a mesma. Os indivíduos passam da falta de consciência ou disposição para fazer algo sobre o problema para a consideração da possibilidade de mudança, e daí para a determinação e para efetivar a mudança ao longo do tempo 3 .
A mudança não acontece de um momento para outro, ela é um processo descrito por seis estágios que caracterizam a Roda da Mudança, conforme figura a seguir:
Trata-se de um círculo que reflete a realidade de praticamente todos os processos de mudança, sendo por isso normal que a pessoa circule o processo várias vezes antes de alcançar uma mudança estável. Pode-se esperar que a pessoa que sofre circule de três a sete vezes antes que, finalmente, saia da roda.
Há muitas influências que podem ajudar a pessoa a mudar, como a família, o grupo de convivência, as crenças positivas sobre si mesmo, ou seja, a boa autoestima e, ainda mais, as influências espirituais de benfeitores que acompanham o esforço da pessoa.
Para utilizar a Entrevista Motivacional Breve deve-se colocar à disposição numa escuta reflexiva, com encorajamento, sempre se posicionando de maneira empática frente ao desconforto e sofrimento da pessoa. A empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro, aceitando o jeito e as condições que a pessoa se encontra no momento.
Para estar seguro em como agir, pode-se identificar o estágio em que a pessoa que sofre chega para atendimento avaliando os seguintes critérios:
- PRÉ-CONTEMPLAÇÃO – neste momento a pessoa ainda não está considerando a possibilidade de mudança, pois não identifica a situação como um problema. Ela está fora da Roda da Mudança, ainda não está identificando em sua vida as situações que estejam prejudicando-a, não está pronta para mudar.
Seu comportamento é rebelde e resistente ao tratamento, pode mudar de assunto quando lhe perguntam sobre sua experiência, respondendo com agressividade e encontrando mil desculpas para não frequentar o grupo de apoio.
Esta pessoa não sabe que seu comportamento poderá levá-la a sofrer, por isso não vem sozinha ao atendimento, ou às vezes é trazida por um familiar, mas na primeira oportunidade vai deixar de frequentar.
Sugestão de procedimento: tente levantar dúvidas, para aumentar a percepção da pessoa sobre os riscos e problemas do comportamento atual, sem confrontação. Nunca afirme sua opinião, apenas ofereça reflexão em forma de perguntas e ofereça limites claros.
- CONTEMPLAÇÃO – quando começa a considerar a possibilidade de que algo vai mal, a pessoa entra em um período caracterizado pela ambivalência. Ou seja, ela começa a contemplar ou ponderar a necessidade de mudança de comportamento, assim como pode rejeitar que algo vai mal. Se falar livremente sobre o assunto, provavelmente a pessoa ficará dividida entre motivos de preocupação e justificativas para despreocupação. Cada lado do conflito tem seus benefícios e seus custos.
Sugestão de procedimento: reflita junto com a pessoa os benefícios em mudar o comportamento e os riscos de não mudar. Se este momento fosse uma balança, faça perguntas que leve a pessoa que sofre a encontrar razões para incliná-la para o lado da mudança. Ofereça ideia para o tratamento.
- DETERMINAÇÃO – neste estágio a pessoa começa a reconhecer que sua vida está precisando mudar. Ela percebe onde teve prejuízo com a droga, dizendo frases do tipo: “A situação está séria! Preciso fazer algo.” ou “Agora vi que estou perdendo minha família”.
A pessoa começa a frequentar o grupo de apoio decidida a fazer a mudança, apesar de nem sempre ficar abstinente. Ela está se preparando para efetivar as mudanças como se fosse uma janela de oportunidade que se abre por determinado período de tempo. Se tiver sucesso em várias áreas da sua vida, como sendo: afastamento dos amigos de uso da droga (ativa); apoio da família; consulta médica, entre outras, ela poderá permanecer determinada e seguir na Ação, e o processo de mudança continua.
Sugestão de procedimento: ajude a pessoa a encontrar as melhores atitudes para a mudança, sem imposição. Pergunte o que a pessoa acha que pode ajudar na sua recuperação.
- AÇÃO – este é o momento de real engajamento em promover as mudanças importantes rumo à recuperação. Geralmente a pessoa cumpre o que promete, frequenta o grupo assiduamente e contribui incentivando os participantes novatos.
Sugestão de procedimento: encoraje e elogie sinceramente todos os comportamentos positivos esperados para a manutenção deste estágio.
O início da Ação é uma fase crítica, pois a pessoa ainda está vulnerável e qualquer distração poderá tirá-la do caminho da recuperação. Se acontecer um deslize e a recaída do comportamento anterior, a pessoa poderá voltar a usar a droga.
- RECAÍDA – este evento não deve ser considerado como fracasso, mas sim, como um episódio ou ocorrência esperada no processo de mudança. O voluntário precisa estar atento para não recair junto com a pessoa e reforçar sua autoestima para poder mobilizar novas forças de reconstrução do tratamento.
Sugestão de procedimento Sugestão de procedimento: ajude a pessoa a renovar os processos de Contemplação, Determinação e Ação. Pode-se dizer que cada deslize ou recaída aproxima mais a pessoa da plena recuperação, como tentativa de impedir que as pessoas desanimem, desmoralizem-se ou imobilizem-se quando da ocorrência deste.
- MANUTENÇÃO – após alguns episódios de Recaída e retorno à Ação, a pessoa passa a sustentar a mudança de comportamento até que seja integrada ao estilo de vida. Este é o momento de sobriedade tão esperado pela pessoa que sofre e pela família, pois a esperança em uma vida livre das drogas torna a brilhar.
A saída permanente da Roda da Mudança significa que a pessoa consegue manter-se no novo comportamento e atitude positiva em relação a si mesma e aos compromissos assumidos na família e no grupo de apoio.
Contudo, a prevenção da recaída deverá ser uma atitude constante na vida. Costuma-se dizer que o dependente químico nunca será um ex-dependente, pois estará sempre em recuperação, visto que o risco de passar por algum estresse que provoque a recaída não vai deixar de existir. Lembremos que a sobriedade é uma vitória parcial, pois o Espírito ainda guarda a marca da dependência 7.
Para integrar melhor estes conceitos podemos entender os estágios motivacionais com os ensinamentos de Jesus. O Mestre nos deixou na Parábola do Semeador um roteiro seguro para compreendermos como cada pessoa recebe as oportunidades da reencarnação para promover seu processo de evolução, elucidado por Schutel 5 quando afirma que “é a parábola das parábolas: sintetiza os caracteres predominantes em todas as almas”.
Kardec6 refere que estas palavras representam “perfeitamente as diferenças que existem na maneira de aproveitar os ensinamentos do Evangelho”, sendo muitas vezes letra morta para alguns, que não produzirão frutos.
PARÁBOLA DO SEMEADOR 6
Naquele dia, saindo Jesus de casa, assentou-se à borda do mar. E vieram para ele muita gente, de tal sorte que, entrando em uma barca, se assentou; e toda a gente estava em pé na ribeira. E lhes falou muitas coisas por parábola, dizendo: Eis aí que saiu o que semeia a semear. E quando semeava, uma parte das sementes caiu junto da estrada, e vieram as aves do céu, e comeram-na. Outra, porém, caiu em pedregulho, onde não tinha muita terra, e logo nasceu, porque não tinha altura de terra. Mas saindo o sol a queimou, e porque não tinha raiz, se secou. Outra igualmente caiu sobre os espinhos, e cresceram os espinhos, e estes a afogaram. Outra enfim caiu em boa terra, e dava fruto, havendo grãos que rendiam a cento por um, outros a sessenta, outros a trinta.
O que tem ouvidos de ouvir, que ouça. (Mateus, XIII: 1-9).
Ouvi, pois, vós outros, a parábola do semeador. Todo aquele que ouve a palavra do Reino e não a entende, vem o mau e arrebata o que se semeou no seu coração; este é o que recebeu a semente junto da estrada. Mas o que recebeu a semente no pedregulho, este é o que ouve a palavra, e logo a recebe com gosto; porém, ele não tem em si raiz, antes é de pouca duração, e quando lhe sobrevém tribulação e perseguição por amor da palavra, logo se escandaliza. E o que recebeu a semente entre espinhos, este é o que ouve a palavra, porém os cuidados deste mundo e o engano das riquezas sufocam a palavra, e fica infrutuosa. E o que recebeu a semente em boa terra, este é o que ouve a palavra e a entende, e dá fruto, e assim um dá cento, e outro sessenta, e outro trinta por um. (Mateus, XIII: 18-23).
O semeador somos todos nós em plena atividade de acolher, compreender, aceitar e encaminhar as pessoas que sofrem. Cada terreno representa um estágio em que a pessoa se encontra quando chega para o atendimento na Casa Espírita e o momento de vida que ela está para iniciar a mudança do comportamento-problema. As sementes são as palavras de encorajamento, reflexão e acolhimento que o voluntário oferece no grupo de apoio.
Quando a pessoa que sofre chega a Casa Espírita em Pré-Contemplação, as palavras que lhe são oferecidas são letra morta, como as sementes que caíram ao longo da estrada ressecada e são comidas pelas aves. Antes mesmo de serem semeadas, as palavras são arrancadas pela sua própria resistência e endurecimento de sua alma, por influência de companheiros da ativa e, também, por obsessores que acompanham a pessoa na sua caminhada do vício e não querem sua melhoria, pois estão sedentos para sorverem sensações da matéria 7 .
O terreno pedregoso representa o estágio de Contemplação no primeiro momento, pois acontece a semeadura quando a pessoa começa a pensar que precisa realizar uma mudança, mas ainda está ambivalente, contemplando as possibilidades sem efetuar uma mudança firme. A partir do esforço que a pessoa faça para continuar tentando se melhorar pode-se abrir uma janela de oportunidade – Determinação – mas não se engane, algumas sementes ainda serão desperdiçadas ao longo do terreno pedregoso, pois não há muita terra e as palavras poderão ser recebidas com interesse fugaz, assim, “quando lhe sobrevém tribulação e perseguição por amor da palavra, logo se escandaliza” 6 fazendo secar a semente da mudança.
O trabalho é árduo, muitos serão os empecilhos que sufocarão a vontade de se recuperar, conforme Jesus antecipou a dificuldade que todos nós enfrentaríamos em nossa tarefa de autoconhecimento 6 .
Desta forma, persistir na Ação requer de todos nós – seja qual for a batalha que estejamos enfrentando para promover a mudança desejada – persistência, disciplina e maturidade para exercer nosso livre-arbítrio 8 .
No estágio da Ação, as pessoas podem sofrer deslizes e recaídas que precisarão ser superadas com bom ânimo para não perderem os esforços realizados até agora. As recaídas são os espinhos que atrapalham o crescimento das sementes, ou seja, a manutenção da abstinência.
Finalmente a palavra é recebida com entendimento e a pessoa age com determinação na promoção da mudança de comportamento. Angelis 4 refere que “as construções mentais superiores são frutos de hábitos saudáveis, renovam-se e crescem no ser, originados do Espírito que as capta do Pensamento Divino, do qual procedem todas as forças da edificação e da realização total”.
A Boa Terra é o momento do estágio de Manutenção, quando a pessoa sustenta o comportamento de mudança, ou seja, mantém a sobriedade até que seja integrado ao estilo de vida e não venha mais a recair. A recuperação é mais duradoura, rendendo 30 e 60 por um, que representam as recaídas ao longo da caminhada.
No entanto, Jesus antecipou que será possível ter uma plena colheita frutífera em nossa vida. Nosso esforço será recompensado com a germinação de 100% das sementes recebidas na boa terra, quando a recuperação promoverá a saída permanente da Roda da Mudança, nesta encarnação ou nas encarnações futuras.
A Parábola do Semeador é um modelo seguro de esperança na recuperação do ser humano, de motivação para compreender a condição emocional que se encontra a pessoa que sofre e, sobretudo, de responsabilidade coletiva no papel do semeador, assim como de responsabilidade individual, no papel da Boa Terra.
Desta forma, precisamos ter paciência com as nossas dificuldades e com as dificuldades da pessoa que sofre, já que o semeador, segundo Jesus, não desiste às primeiras dificuldades da germinação.
O Mestre, conhecendo a natureza da nossa alma, previu que a evolução é um processo, assim como a conscientização de nossos erros e a disposição para iniciar a mudança rumo ao bem.
Referências
1. Hernani, G. A. Espírito, Perispírito e Alma. Ensaio sobre o Modelo Organizador Biológico. São Paulo: Ed. Pensamento – 1ª ed., 1984.
2. Angelis, J. (psicografado por Franco, D.P.) Constelação Familiar. Salvador: Ed. Leal, 2ª ed. 2009.
3. Miller, R.M.; Rollnick, S. Entrevista Motivacional – Preparando as pessoas para a mudança de comportamento adictivos. Porto Alegre: Artmed, 2001.
4. Angelis, J. (psicografado por Franco, D.P.) Vida: desafios e soluções. Salvador: Ed Leal, 11ª ed. p. 48-50, 2011.
5. Schutel, C. Parábolas e Ensinos de Jesus. São Paulo: Casa Editora O Clarim, p.34 e 35, 2000.
6. Kardec, A. Evangelho Segundo o Espiritismo – Cap. XVII, item 5. São Paulo: IDE. 63º ed., 1986.
7. Sérgio, L. (psicografado por Machado, I.P.) Driblando a dor. Brasília: Ed. Recanto, 12º ed., 2009.
8. Rohden, H. Sabedoria das parábolas. São Paulo: Ed. Alvorada,4ª ed. (19?).
[1] Psicóloga clínica, especialista em dependência química, terapeuta de indivíduo, casal e família. Expositora espírita e coordenadora de grupo de estudos da AMERGS, integrante da Sociedade Espírita Caminho da Luz – Porto Alegre.